terça-feira, 10 de novembro de 2009

ANÁLISE LITERÁRIA DO POEMA “HOJE”, DE WALY SALOMÃO

Waly Salomão foi um baiano do sul da Bahia, filho de pai turco e mãe baiana e que desde cedo manteve contato com livros. Nascido dessa mistura de raças, uma mostra de tolerância e convivência entre os diferentes, não é de se estranhar que esse hibridismo se espelhasse em seus poemas, através da mistura de temas e, principalmente, através da liberação de sentimentos e idéias extravagantes, sonoras, chamativas.

No poema “Hoje”, o eu-lírico demonstra o seu frenesi pela vida, a sua sede de celebrar o momento presente: o aqui e o agora – sem cerimônia! E, mesmo sem expressá-lo claramente, ele demonstra o desejo implícito de passar uma borracha no passado, de suplantá-lo, uma vez que cultuando o presente, está, de certo modo, negando o passado.

A composição do poema consiste em quatro estrofes heterogêneas, que por sua vez são compostas de versos livres e brancos, ou seja, cada estrofe possui um número distinto de versos e estes não possuem uma quantidade definida de sílabas, nem rimas, com exceção de alguns versos aleatórios cuja sonoridade converge com a de outros, provocando a rima (diplomacia/ dia-a-dia – 3º e 5º versos da 3ª estrofe, respectivamente).

O autor retoma, acredito que de forma consciente, à tendência adotada pelos modernistas da primeira fase do Modernismo brasileiro, que foi de combate ao passado, às formas de se fazer arte e cultura até aquele momento: logo na primeira estrofe o eu-lírico, que está em primeira pessoa, declara abertamente que não quer seguir as regras, as normas vigentes na sociedade – “O que menos quero pro meu dia/ polidez, boas maneiras.” Em seguida, faz uma alusão às convenções da gramática normativa, quando afirma “Quando nasci, nasci nu,/ ignaro da colocação do ponto e vírgula,/ e, principalmente, das reticências.” Nesse ponto, é possível fazer uma correlação com o poema “Poética”, de Manuel Bandeira, no trecho: “Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo./ Abaixo os puristas// Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais/ Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção/ Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis.”[1]. Os dois autores pregam a liberdade de expressão, o uso irrestrito das palavras, sem regras que porventura possam limitar o ato comunicativo. Aliás, a poesia de Waly também se parece com a de Manuel Bandeira no estilo da linguagem empregada por ambos, na necessidade de utilizar palavras e expressões simples, compreensíveis para uma gama de leitores.
Na segunda estrofe, o eu-lírico demonstra toda a sua vontade de dar movimento à sua vida, de desestruturar a ordem vigente, de estabelecer o seu próprio ritmo, a sua “batida”, assinalar o território da sua “tribo”. Essa cadência forte aparece no poema através da repetição da palavra ritmo, que dá uma sonoridade aos versos da estrofe que pertencem, se assemelhando aos poemas do Concretismo, que procuram retratar semelhanças entre o significante e o significado.
Na terceira estrofe, novamente é possível perceber a intertextualidade com Bandeira: outra vez o texto de “Hoje” e de “Poética” dialogam entre si. Agora, os três primeiros versos dessa estrofe (“Não está prevista a emissão/ de nenhuma “Ordem do dia”./ Está prescrito o protocolo da diplomacia.”) se aproximam dos versos iniciais do poema de Bandeira: “Estou farto do lirismo comedido/ Do lirismo bem comportado/ Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.” O dialogismo dos dois consiste no desejo de ambos de romper o protocolo, de descer as máscaras sociais impostas pela boa educação, de agir livremente, sem regras. Está implícito nos dois textos uma certa ironia, uma ligeira crítica à burocracia e também uma aversão à hierarquia, perceptíveis no emprego de expressões como “protocolo da diplomacia” e “manifestações de apreço ao sr. diretor” em Waly e Bandeira, respectivamente.

Waly Salomão transita, muito à vontade, entre o moderno e o pós-moderno. Na dita terceira estrofe o poeta traz elementos da pós-modernidade, como a agitação e a propaganda, que são dois ícones da atualidade, uma vez que estão presentes na vida das pessoas: esta, em toda a parte; aquela, principalmente entre os moradores das grandes metrópoles. Na referida estrofe há a reiteração do ritmo frenético suscitado pelo autor: não se trata de qualquer ritmo, mas é algo muito forte – “ápice do ápice”, nas palavras do próprio Waly.

Na quarta e última estrofe, Waly utiliza a metalinguagem para confirmar algumas impressões as quais já havíamos descrito anteriormente: o tom irônico que perpassa todo o poema e também a nítida conexão com o Modernismo. Mas ele vai além, ele procura justificar a necessidade do eu-poético por ritmo e, ao mesmo tempo, mostrar que a simples busca de ritmo não é algo fácil, banal, corriqueiro. Neste ponto, ele utiliza uma metáfora, quando o eu-lírico compara o seu próprio ritmo ao ritmo da água que jorra da torneira, que se mostra ora regular, ora aleatória.

Na estrofe final também o poeta recorre ao uso de imagem concreta, quando ele dá a forma da água que sai da torneira aos versos, que ora são fortes, caudalosos; ora são meros respingos, demonstrando a instabilidade rítmica proposta pelo poeta no decorrer do texto.

No final, a imagem que se tem é de um Waly apaixonado, vibrante e inquieto; de alguém que não passaria a vida em branco de forma alguma. De fato, o escritor não escreve à toa, cada escrito contém um pouco da essência de quem o escreveu: mesmo que a disposição das palavras fosse aleatória, mesmo assim, a escolha dessa e não daquela palavra já é suficiente para fornecer pistas sobre o pensamento e a postura do escritor.

O poema em questão está situado em seu tempo, revestido de caracteres pós-modernos, tanto no que concerne ao conteúdo, quanto à forma (disposição de estrofes e versos, prevalência de versos brancos e livres) e, ao mesmo tempo, retoma o Modernismo e o Concretismo, dando a justa impressão ao leitor que o poeta, de fato, está intercalando um estilo a outro, materializando o ritmo do eu-lírico, que não é uniforme, mas aparece multifacetado e em processo permanente de mudança, sendo construído e desconstruído em todo o poema.

Um único olhar sobre o poema não dá conta da miríade de possibilidades contidas no texto poético, como afirma Norma Goldstein: “A interpretação dificilmente será a palavra final, se for feita por uma só pessoa. O texto literário talvez seja aquele que mais se aproxima do sentido etimológico da palavra ‘texto’: entrelaçamento, tecido.” (GOLDSTEIN, 2006. p. 12). Então, pode-se concluir que o presente texto é uma interpretação possível, e que provavelmente existirão outras tantas análises, que poderão convergir ou divergir desta, mas a leitura que se faz aqui é uma possibilidade real, a tessitura do tecido com o entrelaçamento que se vislumbrou para nós.

Reprodução do poema, na íntegra:

Hoje
Waly Salomão
O que menos quero pro meu dia
polidez,boas maneiras.
Por certo,
um Professor de Etiquetas
não presenciou o ato em que fui concebido.
Quando nasci, nasci nu,
ignaro da colocação correta dos dois pontos,
do ponto e vírgula,
e, principalmente, das reticências.
(Como toda gente, aliás...)
Hoje só quero ritmo.
Ritmo no falado e no escrito.
Ritmo, veio-central da mina.
Ritmo, espinha-dorsal do corpo e da mente.
Ritmo na espiral da fala e do poema.
Não está prevista a emissão
de nenhuma “Ordem do dia”.
Está prescrito o protocolo da diplomacia.
AGITPROP – Agitação e propaganda:
Ritmo é o que mais quero pro meu dia-a-dia.
Ápice do ápice.

Alguém acha que ritmo jorra fácil,
pronto rebento do espontaneísmo?
Meu ritmo só é ritmo
quando temperado com ironia.
Respingos de modernidade tardia?
E os pingos d’água
dão saltos bruscos do cano da torneira
e
passam de um ritmo regular
para uma turbulência
aleatória.

Hoje...
Reprodução do poema de Manuel Bandeira, utilizado em comparação ao de Waly:

POÉTICA
Manuel Bandeira
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de
apreço ao sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

[1] BANDEIRA, Manuel. Poética. Disponível em: www.infoescola.com/livros/estrela-da-vida-inteira/ - 31k –Presente na obra: BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 2 ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1970.

Um comentário:

  1. Muito interessante esse sua analise deste lindo poema de Waly. Recomendo a leitura de Pista de Dança do mesmo autor na voz de Adriana Calcanhotto. Outro interessantíssimo....

    Abraços, se puderes dê um olhada no meu blgo:

    http://escrevinhacoesquotidianas.blogspot.com/

    Fui...

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