segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A conquista da leitura

Há não muito tempo, em um lugarejo empoeirado e seco, em meio à caatinga, nascia uma leitora, em todos os sentidos da palavra – muito mais do que “uma leitora de carteirinha”. Aliás, como não havia biblioteca por lá, nem se falava em carteirinha.
A menina magricela e “perebenta”, ao contrário do que aparentava a sua frágil fisionomia, era uma criaturinha de personalidade marcante, o que demonstrou logo nos primeiros anos de sua vida, mais precisamente, aos cinco anos de idade, ao ter várias crises de choro para convencer seus pais a matricularem-na em uma escola, com urgência, tal era a curiosidade da garotinha para adentrar no misterioso mundo das palavras.
A experiência com a língua materna aconteceu muito antes da escola, com os familiares, a casa, os brinquedos, as gravuras dos livros, os objetos e o mundo que a circundava, com as cantigas de ninar entoadas por sua mãe e suas irmãs e as brincadeiras de roda no chão vermelho do povoado onde residia – tudo novo, interessante e rico em descobertas.
Houve um primeiro contato com a escola, uma espécie de Educação Infantil tradicional, em escola particular, com professora leiga e num espaço sem qualquer estrutura de uma escola. Aliás, aquilo nem mesmo lembrava uma escola de verdade: funcionava em um depósito, ao lado da casa da jovem estudante que gastava uma parte de seu tempo a entreter os filhos dos vizinhos e conhecidos, em troca de algum dinheiro. As condições eram muito precárias – as crianças tinham que levar bancos, sobre suas cabeças, para que pudessem se sentar. Foi um tanto decepcionante para a pequena Lindoya: onde estavam as letras? Por que a escola não oferecia textos, nem mesmo orais?
A pequena, muito observadora, estava achando que as histórias contadas nos programas de rádio e os “causos” que seus pais e irmãos mais velhos contavam para ela eram muito mais interessantes do que aquelas aulinhas sem graça e pobres. Havia também a vizinha ceramista – que criava pequenas esculturas de barro “de louça” e, à medida que realizava o seu trabalho, muitas vezes rodeada pela molecada circunvizinha, ia tecendo histórias e mais histórias sobre bichos domésticos e selvagens, aves de todos os tipos e formatos e lavadeiras, e trabalhadores braçais e padres e noivas e uma infinidade de objetos minúsculos que iam surgindo por entre suas mãos habilidosas, enquanto a criançada se mantinha em um silêncio quase religioso, olhos arregalados e respiração entrecortada pela admiração e encantamento daqueles momentos mágicos.
No ano seguinte à experiência pré-escolar, Lindoya foi matriculada na Alfabetização – que alegria! Finalmente poderia ler livros e também as “garatujas” que escrevia em toda a parte: livros, cadernos, folhetos, paredes, móveis e até no chão. Mas as coisas não eram tão simples como ela imaginava – a escola era longe, também não funcionava num local adequado e o depósito era apinhado de crianças de várias idades e de comportamentos diversos, apesar de serem todas alfabetizandas. A professora inexperiente e muito impaciente não dava conta sozinha de ensinar a ler e escrever aquela gurizada toda: gritava o tempo todo, esbravejava com os mais “danados” e quase não sobrava tempo para ensinar as primeiras letras.
Essa professora obrigava os alunos a dar a lição no ABC, sem nem mesmo ter explicado direito as letras do alfabeto para a turma. Um belo dia, sem mais nem menos, ela olhou para a magrelinha que sentava sempre à frente e não bagunçava como os outros alunos (os mais comportados não eram muito notados; por isso, não recebiam a punição de dar a lição na frente de todo mundo, sem saber de nada, sem qualquer preparo), mas nesse fatídico dia, a professora estava “atacada” por demais e exigiu, aos berros, que a pobre criaturinha lesse, em voz alta, para toda a classe.
Lindoya ficou lívida de susto – até aquele momento ninguém havia lhe ensinado formalmente a ler: já havia visto, nos livros, aqueles sinaizinhos curiosos e seus irmãos disseram a ela que aquilo eram letras e que estas formavam as palavras – havia o “A”, o “B”, um “B” com “A” fazia “BA” etc. Na hora, ela se apegou a isso: tentou se lembrar do que os seus irmãos haviam lhe dito e começou, lentamente e gaguejando muito, a decodificar aquele livrinho feio e sem graça, mas que se salvava por conter algumas gravuras e que, por esse motivo, era folheado amiúde por sua dona.
Eu sabia ler!! – pensou a pequena estudante – não cabendo em si mesma de tanta emoção ao ouvir a própria voz desvendando aqueles sinaizinhos. Mas a emoção fora demais para ela, a sua fala estava embargada pelo forte sentimento que a acometia e, assim, a nossa menininha gaguejava mais e mais, de alegria, de emoção, de susto. Mas a professora não queria saber de sentimentalismos, chamou a garotinha de “burra” em alto e bom som, para quem quisesse ouvir, mas a pequena heroína prosseguia, deliciosamente escandalizada pela sua imensa descoberta... Foi então que aconteceu o pior, o inimaginável para uma escola: Dona Xis (vamos chamá-la assim) continuou a xingar Lindoya e disse para a menina parar com aquela leitura horrorosa e, não satisfeita com as ofensas verbais, atirou a caneta BIC de qualquer jeito, bem na cabeça da pequena criança, ferindo-a.
Lindoya sentiu o sangue escorrendo em sua testa e se espalhando por sua fronte, em jatos vermelhos de humilhação, vergonha e sofrimento. A partir desse momento tudo em relação a essa escola se apagou na mente da nossa protagonista mirim – ela tinha apenas seis anos e estava realizando o maior sonho de sua vida, apesar da dor e do constrangimento ao qual fora submetida. Essa foi a maior experiência em Língua Portuguesa e a mais marcante de toda a sua vida escolar.
Daí por diante Lindoya não parou mais de ler, lia tudo: livros enormes de História Antiga, O Tronco do Ipê, de José de Alencar, livrinhos de Bang-Bang de um de seus irmãos, receitas, placas, anúncios – tudo!! E os compreendia direitinho – até hoje traz consigo as recordações de Palheta, que trouxe a primeira muda de café para o Brasil, figura retirada daquele livrão de História que costumava pegar escondido do velho malote do seu irmão Lelê, que herdara do avô paterno deles o baú antigo, de couro de boi, e o gosto pela leitura.
Além dessas lembranças que nossa pequena jovem carrega consigo, há também a figura da elegante professora Nadira, da 1ª série do Ensino Fundamental, que era uma leitora apaixonada de histórias de banca de jornal e também uma grande colecionadora desses romances, cujas coleções tinham denominações de nomes de mulher: Sabrina, Júlia e Bianca. Pois bem, a professora emprestava um romance para Lindoya por semana, que levava o precioso objeto para casa sem que ninguém soubesse, pois sua mãe achava a leitura desses livros inadequada para uma menina tão nova, por conter cenas de mulheres modernas e arrojadas, independentes, e também separações, traições e um pouco de sexo.
Não é preciso dizer que não adiantava os cuidados maternos, Lindoya lia avidamente os belos romances da “Pró” Nadira, às escondidas, é claro. Havia sempre um exemplar de Sabrina, Júlia ou Bianca embaixo do colchão da cama da garota rebelde. E sempre que terminava um volume, a sua professora trocava-o por outro, sem pestanejar. Lindoya leu uma infinidade deles... E aprendeu bastante com as leituras realizadas – conheceu culturas diferentes, lidou com todo tipo de gente, se safou de mil e um perigos e armadilhas e amadureceu mais cedo, também.
As aulas de Língua Portuguesa sempre foram as mais agradáveis para a jovem estudante: lia os textos e os livros antes mesmo dos professores solicitarem e também fazia todas as atividades. Era ótima aluna e tirava sempre as melhores notas da classe e, muitas vezes, da escola inteira.
Era adorada por todos os professores de Língua Portuguesa, desde a 1ª série do Ensino Fundamental até concluir o Ensino Médio, e era também admirada por todos os colegas. Não se sabe ao certo se o trauma causado pela agressão da professora da Alfabetização em Lindoya foi superado pela sua paixão pelo conhecimento e pela linguagem; ou se foi propagado, ao longo da sua vida escolar, materializando-se em seu perfeccionismo, no desejo de querer ser a melhor sempre, a mais culta, a dona da letra mais bonita e redonda, a que lia mais e que dava conta de todos os conteúdos e que, não raro, conhecia o assunto melhor que os professores.
De qualquer forma, aquela experiência marcante não podou a relação de Lindoya com as letras, como era de se esperar; ao contrário, estreitou os seus laços com o mundo da leitura/escrita, tornando-os cada vez mais fortes, uma vez que já havia um contato incipiente com o universo letrado (a nossa leitora era a penúltima filha de treze; alguns de seus irmãos poderiam ser seus pais, tal era a diferença de idade – e eles se preocupavam com a educação da caçula das mulheres e se esforçavam para orientá-la) – as leituras que Lindoya fez e as que ainda faz se confundem com sua própria vida.
Hoje, a eterna leitora que Lindoya se transformou considera-se uma pessoa competente tanto na leitura, quanto na escrita, pois utiliza o que aprendeu na disciplina de Língua Portuguesa para se expressar, de modo oral ou escrito, nas diversas situações do cotidiano e, inclusive, garante o pão de cada dia, pois se tornou professora de – adivinhem - Língua Portuguesa!
Ela gosta de ler, de estudar, de descobrir coisas novas – e os professores que teve não mataram a sua curiosidade – ao contrário, a incentivaram, com exceção da famigerada Dona Xis, aquela da Alfabetização, lembram? Mas isso já passou...

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